As gêmeas Cícera Lopes de Oliveira e Romana Menezes Silva não escondem a alegria de compartilhar os relatos que revelam a importância do Padre Cícero Romão Batista para o Cariri cearense. Mais que devotas, elas são netas adotivas desse religioso e político natural do Crato, mas com a história de vida entrelaçada à fundação de Juazeiro do Norte. A mãe das gêmeas, Petronila Maria da Conceição, era filha adotiva do Padre Cícero. “Nosso avô registrado em cartório, avô adotivo, é Padrim Cícero. Nós fomos criadas sabendo que tem o Nosso Senhor, que é o rei do céu e da terra, mas que meu Padrim Cícero é tudo na nossa vida”, afirma Cícera.
Nascidas em 1938, elas não conheceram Padre Cícero, que faleceu em 20 de junho de 1934, por isso Petronila fez questão de homenagear o pai adotivo nomeando três de seus filhos como Cícera, Romana e Batista – já falecido. Também foi a mãe a responsável por colocar todos os dezesseis filhos nos percursos da fé.
Cícera e Romana são netas adotivas do Padre Cícero
Nesse caminho de devoção está a Colina do Horto, o lugar mais alto de Juazeiro do Norte, onde atualmente fica o Museu Vivo do Padre Cícero – antigo Casarão –, a estátua inaugurada em 1969 em homenagem ao religioso, a igreja do Bom Jesus do Horto e a trilha do Santo Sepulcro com 3 km de extensão. O local, que também é um dos geossítios do Geopark Araripe, atrai anualmente mais de dois milhões de visitantes, entre romeiros, pagadores de promessas e turistas de diversas regiões do País.
Juazeiro do Norte tem um calendário religioso com 12 romarias realizadas ao longo do ano. Um dos principais pontos do circuito religioso é o geossítio Colina do Horto, que é demarcado pela representação das 14 estações da Via Sacra.
Cícera e Romana, que agora vivem em cidades separadas, uma em Juazeiro do Norte, e a outra em Fortaleza, afirmam que agora está mais fácil para as pessoas participarem das romarias. A cidade conta com diversos hotéis, pensões, um Centro de Apoio ao Romeiro e um aeroporto regional. Mas a distância não separa as irmãs que têm muitos relatos de fé para compartilhar. Todos as madrugadas elas rezam juntas – por telefone – o ofício da Imaculada Conceição.
A infraestrutura e os recursos tecnológicos atuais são bem diferentes de quando as irmãs eram pequenas e, guiadas pela mãe, caminhavam pelas veredas da Colina do Horto, antiga Serra do Catolé. “Meu Padrim Cícero, quando estava estressado com tanto horror do povo perseguindo ele, ia para o Santo Sepulcro com os beatos que o acompanhavam, e lá ficava um fim de semana rezando e conversando. Eles faziam fogo e café para dar a quem chegava. O último domingo de julho era a data que meu Padrim Cícero mais ficava lá”, relata Cícera.
Segundo Rafael Celestino, geógrafo e colaborador do Geopark Araripe, a Colina do Horto se difere dos outros geossítios, abrigando rochas com 600 milhões de anos. “O Horto não se liga às rochas que formam a Chapada do Araripe. É uma outra dinâmica que reflete as rochas mais antigas do mundo, oriundas do trabalho do vulcanismo, que podem ser rochas vulcânicas e plutônicas. No caso do Horto são plutônicas que se esfriaram em subsuperfície, são granitos, dioritos e granodioritos”, explica.
O geólogo ressalta ainda que a população se conecta aos elementos naturais por meio da fé. Nesse lugar místico também existem capelas. “Se você fizer a trilha do Santo Sepulcro vai perceber que tem rochas ali com nomes: Pedra Dois Irmãos, Pedra do Pecado, Pedra Oca e a do Marco do Padre Cícero. Dizem que o Padre Cícero fez uma oração, estava bravo com alguma coisa, colocou o dedo para apontar, e quando tirou ficou a marca do dedo dele. A população se apropriou disso. A gente costuma dizer que as rochas ganharam alma”.
A Pedra do Pecado, segundo as narrativas, redime os pecados de quem conseguir ultrapassá-la. Alguns visitantes levam rochas menores para serem deixadas ao longo da peregrinação na trilha. Esse costume está associado a pedidos, graças alcançadas ou penitências. “Já ouvimos falar que tem gente com pecado e leva uma rocha que tem o peso do pecado, muitas vezes simbólico. Mas tem gente que leva porque acha que tem que pagar”, complementa Rafael.
“O Santo Sepulcro tem um mistério, e quem podia contar era meu Padrim Cícero, mas ele nunca contou. O que eu posso contar que minha mãe dizia é que lá tinha uma história, mas a história ficou com meu Padrim”, comenta Cícera.
De acordo com a historiadora Pedrina Pereira, a comunidade do Alto do Horto também guarda outras narrativas sobre esse território, cuja paisagem se transforma de acordo com a quadra invernosa. “Segundo os populares contam, ali no Horto existiria o sítio encantado do Padre Cícero, que seria abaixo do que é hoje a estátua. Quando as pessoas mais pobres chegavam no Horto dizendo que estavam com fome ou passando necessidades, ele dizia: ‘Vá até aquele sítio, coma tudo o que quiser, só não traga nada’. E dizem que as pessoas iam, comiam tudo que queriam e voltavam satisfeitas. Mas quem procurasse aquele sítio sem contactar o Padre Cícero nada encontrava, é como se o sítio se encantasse, sumisse do nada”.
Após a morte do Padre Cícero, os romeiros mantiveram as rezas no Santo Sepulcro, mas foi com a chegada do Monsenhor Murilo de Sá Barreto que o café foi retomado e oficializado. Natural de Barbalha, Monsenhor Murilo foi o pároco da igreja matriz de Juazeiro do Norte. “Ele [Monsenhor Murilo] começou perguntando: ‘Quem vai fazer o café dos beatos?’ Eu e minha irmã dissemos que iríamos fazer. Ele perguntou se a gente sabia ir para o Santo Sepulcro, e eu respondi: ‘A gente ia com papai e mamãe desde pequeninhas. A gente ia a pé, com uma lanterna iluminando para gente não cair, com os pães na cabeça, com o café, açúcar ou rapadura. Chegava lá juntava as lenhas para fazer o café ou chá’”, recorda Cícera.
“E até hoje minha irmã Cicinha, apesar da situação dela de pouca locomoção, faz esse café. Nós tínhamos todo o apoio dos padres do Horto e da matriz. A gente ia a pé com muita garra, coragem e fé em padre Cícero. O café continua para a nossa alegria e vamos participar até o fim das nossas vidas”, complementa Romana.
“As pessoas contam que Padre Cícero dizia que as rochas do Horto iriam virar pão. Ou seja, as pessoas ganhariam o pão de cada dia através daquele espaço. É o que acontece hoje, porque muitas pessoas tiram o pão de cada dia dali, explorando a própria figura dele”, relata a historiadora Pedrina Pereira.
A missa e o café dos beatos e beatas acontecem anualmente no último domingo de julho no Santo Sepulcro.
A força da religiosidade transformou Juazeiro do Norte em uma das cidades mais importantes do Cariri, que soma mais de um milhão de habitantes. Para potencializar a vocação turística e a pluralidade cultural da região, o Governo do Ceará, por meio da Secretaria do Turismo do Ceará (Setur), está implantando um teleférico que vai ligar diretamente a cidade à Colina do Horto. A obra, que é desenvolvida pela Superintendência de Obras Públicas (SOP), está com cerca de 90% de execução, com mais de R$ 75 milhões em investimento.
O teleférico será o segundo da região – o primeiro foi inaugurado em novembro deste ano na cidade de Barbalha. O equipamento contará com 26 cabines climatizadas com capacidade para transportar até oito passageiros sentados. O percurso de 2 km com elevação de 200 metros será realizado entre a Estação Romeiros (inferior) e Estação do Horto (superior), onde está a estátua do padre Cícero. Cada trajeto será realizado em 7min30seg. O entorno das duas estações receberá intervenções urbanas.
“A estação Padre Cícero vai ter cinco lojinhas, bilheteria e banheiros. Vai ter toda acessibilidade ligando até o Horto”, detalha o engenheiro da SOP, José Muniz de Alencar.
A aposentada Maria Irene dos Santos, de 85 anos, está encantada com a possibilidade de chegar mais facilmente até a estátua. “Há muitos anos que nós esperamos ter essa união completa da cidade de Juazeiro com a estátua de Padre Cícero. Quando eu cheguei em Juazeiro [do Norte], eu vi essas peças [da estátua] todas no chão. Vinha todo domingo passear e ver a estátua ser construída. Estou encantada, esse teleférico vai ser a melhor coisa”, comemora Irene.
A historiadora, cordelista e comerciante Sandra Alvino também está na expectativa. Ela tem uma loja no Centro de Apoio ao Romeiro. “O teleférico vai ser importante para dar uma acessibilidade maior para as pessoas, para fazer circular a nossa cultura e tradições, fomentando o turismo, a ecologia e a proteção dessa região que está sempre de braços abertos para todo mundo”, avalia.